segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Sofrimento



"A Irina não sabia o porquê de os meninos não quererem brincar com ela;

Era comum encontrá-la na casa de banho da escola ou num canto escondido no recreio, sempre
abraçada à sua boneca de trapos.

A pequena menina (pequena demais para perceber os outros pequenos) saía da escola, todos
os dias, da mesma forma com entrava...

Em Silêncio.

A linda e calma menina (calma demais para se defender sozinha) saía da escola, alguns dias
(apenas alguns!) com algo diferente..e a mais...


Nódoas negras. (mas nessas ninguém notava)


A Irina aprendia depressa...mas não aquilo que a professora ensinava na sala de aula;


A Irina aprendia no pátio da escola...com as provas (finais?) que os pequenos colegas
(pequenos demais para perceberem a maldade que faziam) a faziam prestar a toda a
hora.

A princesa DEsencantada Irina (desencantada duma "mãe-não-presente" e de um "pai-não-sei-para-onde-foi") vivia numa história sem fadas, num conto em princesas, numa fábula sem nenhuma moral...

A Irina só queria um espaço onde a amassem, a si e à sua pequena boneca de trapos, a Irina
só queria saber porque ninguém brincava com ela..."


Posted by Hello

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

Felicidade

"Quando as vemos a correr pelo pátio,
Quando as ouvimos gritar e cantar no meio da rua,

Quando brincam às mães, aos pais, aos médicos, às enfermeiras, aos "morridos" ou
às lutas...mesmo sem terem sido mães, pais, médicos ou enfermeiras; mesmo sem
saberem bem o que é uma luta, (na luta deles não há sangue nem maldade)mesmo não
sabendo o que acontece quando alguém morre ("Vai para o céu dormir mãe?")...eles
brincam, correm, imaginam...São actores da vida deles e cada brincadeira é uma
peça de teatro...

Quando dizem "Não quero" ou "Não gosto" e sem querer magoam.... e logo, logo
voltam para se desculpar e pedir carinhos...

Quando adormecem a sorrir ao nosso colo ou quando acordam a rir à gargalhada,

Quando....


...Quando tudo isso acontece, eu acredito na felicidade"

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Geofísica


Posted by Hello

"-Há dias em que o simples acto de acordar corre mal - suspirava Ela - Quando acordamos e sentimos aquela estranha sensação de que algo não está bem e que, ao pousarmos o pé em terra (ou simplesmente no chão do quarto) tudo vai tremer... é porque vai mesmo!

-Mas a terra não treme - assegurava Ele - aliás, quando a terra treme, treme para todos, há registo da ocorrência...e, por vezes, causa danos muito visíveis.

Mas Ela retorquia:

- Não precisam existir tais danos para eu ter a certeza que ela treme... não é verdade que a terra gira? Que por vezes nos encontramos de cabeça para baixo? O senhor sente
alguma coisa?

-Não, mas...

-Mas...a terra continua a girar? Continua! Continuamos de cabeça para baixo? Continuamos! Então, se eu digo que a terra treme quando pouso os pés no chão e que esse tremer me faz prever um dia mau, carregado de problemas...o senhor não precisa
de o sentir... pois cada um tem a sua terra que treme debaixo de si...ou talvez
não...

- Impossível! A terra é comum a todos nós! Permita que lhe explique que, em termos geofísicos o planeta...

- Sim doutor, um dia explicar-me-á tudo o que a geofísica diz mas, nesse momento, já terá de ter entendido as questões do geosentimento. Mas hoje não, a terra já tremeu
demasiadas vezes para mim."

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

Dependência

Tinha tido uma infância muito difícil.


Filho de pais separados e em nada deles dependente. Aliás, se deles
dependesse o seu crescimento, não estaria vivo ainda hoje.


A casa onde brincava (apesar do lixo que ocupava o soalho) fica nos arredores da cidade. Foi ali que passou os primeiros anos da sua vida, ajudou a criar os irmãos, dos quais agora nada sabe; amou e odiou uma mãe que nunca conheceu separada das drogas; e foi também ali que a encontrou morta um dia.



No dia em que a morte lhe levou a mãe querida e odiada, ele fugiu. Despediu-se dos pequenos irmãos, juntou algumas doses de cocaína que guardou num saco junto com uma sandes bolorenta e uma maçã, e saiu deixando a porta encostada. De uma
cabine telefónica ligou para as emergências e seguiu o seu caminho... nunca mais
ouviu falar da sua mãe...nem nunca ninguém o procurou.



Naquele dia, ele sentiu mais do que nunca que estava entregue a si mesmo e que nem as doses que trazia na mala o iriam ajudar; Aliás,ele nunca percebera no que poderiam ajudar aqueles pozinhos à mãe, que deles parecia ter dependido desde sempre.



Soube que, a partir daquele instante, a sua sobrevivência só dele dependia. Pois, nem nas histórias os pozinhos de perlimpimpim valiam às fadas e às princesas...quanto mais a ele (sozinho e perdido) na vida real.


segunda-feira, fevereiro 07, 2005

Traição (1ª Parte)

"-Senhor guarda, tenho uma queixa a apresentar, disse.

Mexia as mãos a uma velocidade incrível, dobrava-as, desdobrava-as, mexia no cabelo, limpava as lágrimas já secas...levantava-se da cadeira e tornava a sentar-se vezes sem conta.

-Senhor guarda a minha pessoa foi enganada!

Não havia espaço a silêncio nesta conversa...os soluços tomavam conta dos espaços vazios.

-Quando ? Como? Por quem? Onde? - perguntava ele

Não havia respostas....

Quando? Seria melhor perguntar durante quanto tempo...mas ninguém iria entender...não, ninguém entende...

Como? Oh Deus meu... tantos telefonemas, tantos e-mails, tantas mensagens escritas e o pior... TANTAS fotografias.

Por quem? Nem quer saber...nem se quer lembrar... Mas puro veneno senão mata, deixa ferida...

Onde? Ali, além, por aí...
Talvez num passado longínquo... noutra vida...se calhar nem foi na minha! Não,
fui mesmo eu...mas...

- Porquê Eu? - perguntava ...e tremia..

Não havia respostas...só soluços e... o guarda que esperava,com as mãos preparadas em cima do teclado
para tomar nota da ocorrência..."


Fim da 1ªParte

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

Frio

Brrr...que frio!

Ai ai , que até faz bater o dente!

Frio nesta cidade, frio nesta rua,
frio nesta minha alma!

Frio nas aldeias
(como estarão os meus primos?)
frio nas grandes metrópoles

(e o meu tio?)
frio aqui
onde estou
( como estou eu?)

Brrr...que frio!

Ai que saudades de todos..

Ai que saudades daqueles que nem se
lembram que eu existo; que saudades daqueles que insistem em esquecer onde estou
e daqueles que nunca me conheceram.

Que estarão eles a fazer agora? A
escolher a roupa que vão vestir?

(tenho que arranjar um casaco
melhor)

A decidir o que vão jantar?
( o meu estômago que já reclama)

A aquecer-se junto da lareira ou do
aquecedor?
(ai ai, que até
faz bater o dente)

Que saudades dessas ocupações,
desses pensamentos...que saudades de todos eles...

(já não tenho vinho para me aquecer)

Tenho que continuar a caminhar,
doem-me os dedos de tanto frio

(dói-me a alma por estar sozinho)

Vou continuar a caminhar e procurar
um abrigo melhor
(a polícia
expulsou-me do meu antigo pousio..será que lhe podia chamar antiga casa?)

Talvez aqui não se importem que eu
repouse esta noite
(preciso de
vinho para me aquecer).

Vou fazer a minha cama aqui...hoje.

Longe daqueles que estão à lareira
ou a escolher o que vão vestir...

(Preciso de um cobertor com menos
buracos...)

Que frio...


terça-feira, fevereiro 01, 2005

Sonhos



Ainda ouço todas as vozes da festa de há horas atràs.

Ainda vejo todas aquelas pessoas rodeando-me de beijos e
desejando-me Boa Sorte;

Ainda sinto dores no pescoço de tanto a Inês me ter penteado,
afirmando: "A mana tem que 'tar linda na televisão."

E, sobretudo, ainda vislumbro (apesar de estar a milhas de altitude)
mãos sorridentes, dizendo adeus, ou mãos nervosas limpando lágrimas que
insistiam em cair.

Se é estranho estar em terra e olhar o céu, mais estranho é, cá de cima, ver o que fica no fundo de algo que mais se assemelha a um abismo. Tudo se resume a pequenos pontos
coloridos que, em pouco tempo, se irão transformar numa simples mancha azul,
pois aproxima-se o grande oceano.

Tenho agora algumas horas de viagem para descansar da festa de
despedida de ontem à noite. Foi um mimo vindo da parte dos meus pais, convidar
toda aquela gente: amigos, familiares, professores, eu sei lá! Nunca tinha visto
tanta gente junta, especialmente dentro de minha casa!

Foi uma noite tão linda, que até me esqueci de despedir das pessoas,
mas também não foi muito importante, pois a diversão superou tudo!


Começa agora a cair a noite e, olhando pela janela, vejo algo que me
parece ser um pássaro acompanhando o avião mas, a escuridão aumenta cada vez
mais depressa e acabo sem saber ao certo do que se trata.

Seria a gaivota minha amiga? Quereria acompanhar-me nesta viagem tão
linda? Disparate...a esta altitude!



Não sei, talvez tenha sido apenas ilusão óptica.

Volto a olhar pela janela e, na noite, distingo a imagem da minha
vida: o rio Tejo, Lisboa, a gaivota (que me passou a visitar desde que saí do
hospital) e, na cadeira de verga, um espaço vazio... onde os meus sonhos já não
moram.

Naquela janela nasceram e, ali, foram crescendo. Agora, prestes a
realizar-se, quero dar-lhes uma velhice descansada. Quero que sejam felizes como
eu.



...Pois a janela será fechada para sempre, mas os sonhos permanecerão sempre
comigo...

In: "Um Sonho à Janela", 1ª (e única) Edição




Posted by Hello